19 de novembro de 2018

Mulheres da minha vida

Contava-me aquilo de expressão ausente, entre um trago e outro no cigarro mantido entre os dedos, como quem revive o que terá imaginado vezes sem conta, com a propriedade de quem coabita, faz muito, com a tristeza, de quem a trata por tu.  Contemplava o mar, no seu vai e vem de cor, brilhos, rendas de espuma. Elegante, porte altivo, bonita, olhar sempre triste, resolveu, naquele dia, dizer mais um pouco da sua história. Não foi um acaso, algo que viesse a propósito de outro assunto. Desde que nos encontramos para aquele lanche notara-lhe diferença, uma seriedade pouco comum nela, uma determinação estranha que não procurou esconder. Aguardei me fosse revelado o motivo, evitando a pergunta por me parecer invasiva. Tagarelei sobre coisa nenhuma, ela ouvia, sorria, retorquia, vaga, embora repectiva, penso que até perceber o meu desconforto. Então, da mala retirou um envelope. Olhei-a interrogativa. Pousou-o na mesa, acendeu o primeiro cigarro, em silêncio, como que se preparando para a solenidade do assunto, ou talvez dando-me o tempo necessário para que a minha intuição a confirmasse. Aguardou o término da minha coisa nenhuma já em jeito balbuciado, e questionou-me sobre se eu me recordava do que me havia contado, acerca da sua família, após a revolução que depôs o Xá. Eu  sabia que o seu jovem irmão, universitário, sucumbira às mãos da então autoproclamada polícia de estado, ávidos de castigo contra quem ousou apoiar o regime deposto, que o rapaz fora capturado durante uma manifestação havida nos tumultuosos dias imediatamente seguinte. Sim, claro, como me poderia esquecer. E que o seu pai morrera de desgosto. 
De loucura, precisou. O meu pai morreu  louco, 3 meses após terem morto o meu irmão. Enlouqueceu. Gritava dia e noite pelo nome dele, saía para a rua em gritos excruciantes até que uma droga qualquer o acalmasse. 
Isso em particular eu não sabia ... murmurei. 
Estarrecida, ciente que o que se dispunha a confiar-me teria já passado um milhão de vezes  na sua cabeça, desde esse então, e outros mais milhões  passariam até ao dia da sua morte, nos cenários mais horrendos que uma mente possa alcançar, pois ela não estava lá. Fora para o estrangeiro, pouco tempo antes, incumbida de se esmerar na sua educação académica. Não acompanhou, assim,  onde sentia ter que ter acompanhado o terror dos seus e de outros, não pode pôr ombro a ombro no alicerce que é a família, porque se voltasse, morreria também por simplesmente ter antes saído, ou por nada, não se deviam satisfações ou  se careciam razões específicas para se condenar alguém à morte. 
  
Continuou, relatando o inimaginável que é, ainda assim, sempre possível acontecer. 
Fora de longe que lhe arrancaram o coração vezes sem conta. De longe soube de seu pai se rojar aos pés de alguém, pedindo clemência pelo seu filho, de rogar perdão pela inconsciência da juventude, de jurar ser o seu primogénito um bom menino, de caminhar para o lugar onde o tinham, e a outros, recluso, enquanto, com o despotismo característico da terra de ninguém, cogitavam sobre o que lhes fazer, dias a fio. À porta daquele inferno soube de noites passadas, mais lágrimas no dia seguinte, até por fim um qualquer autoproclamado chefe concordar na sua libertação, em troca de avultada quantia. De longe abraçou a esperança,  de longe soube da quantia paga, de longe ansiou pelo dia em que tudo voltaria à normalidade possível, e de longe soube do algoz que, à hora por si marcada, comparecendo aquele pai na óbvia ânsia de ter de novo o coração inteiro, lhe mata o filho à sua frente.  Teve esse cuidado, o ignóbil, que o senhor assistisse ao enforcamento do seu filho. Mas não se ficou por aí, há muitos requintes na malvadez , o carrasco honrou muitos. Decretou  nada ficar que lembrasse a existência do jovem, então, da casa da família, tudo dele foi dizimado. "Porquê" é a pergunta a que só o ódio sabe responder. Outros pais imploraram por seus filhos e viram os seus pedidos concedidos. Muitos outros não. Aquele, fez parte dos que sofreram  a expressão máxima do desvario na sua forma mais grotesta, que se repercutiu nele, matando-o mais tarde.  Cerca de três meses tarde demais, de facto, já que por esse periodo foi um invólucro, a sua alma partira quando o pior de mundo lhe roubou, daquela forma, o que de melhor tinha no mundo. À sua frente. Um, encarnando a prepotência em toda a sua extensão,  outro, na mesma medida, a impotência. Pode-se morrer muitas vezes em vida, o número de vezes é só proporcional à resistência de cada um, aquele pobre homem não conseguiu viver sem  uma das três partes que eram o seu todo, rasgada de si assim, de forma tão exponencialmente impiedosa. A restante família poupada podia-se pensar ser uma sorte, num tímido lampejo comiserativo saído do crápula auto eleito chefe da pequenez, mas a sorte evadira-se há muito. Ordenou, o imundo, que a recolha do corpo fosse feita pela irmã mais nova, ainda uma menina,  pois era preciso encarniçar mais um pouco, e lá foi a petiza, deixando em casa os progenitores que de vivos, sabia-se porque tão só respiravam.  Daquele miúdo, além das memórias dos seus, nada mais ficou. A menina, hoje mulher, não mais se recompôs.

Relatos destes há muitos, infelizmente (um, já seria demais) não foi a primeira vez que eu quis morrer, tal o nojo sentido por pertencer à espécie. Contudo, quando ouvido de alguém com quem privamos e a quem queremos tão bem, as palavras ausentam-se, desaparecem, falham, ou talvez nem existam. Tinha as mãos cobrindo-me o rosto,  por entre os dedos olhava-a, transida,  não havia ódio na sua voz, nem na sua face, postura, nem nos olhos que tinham voltado do mar e se haviam fixado em mim. Pelo contrário, no seu olhar detectei algo como que vitorioso, percepção que atribuí ao turbilhão de coisas ruins  que me invadiam, por isso muito passíveis de me induzirem em erro, mas ela reforçou aquele olhar para que eu o apreendesse bem, ordenando-me que parasse de chorar.  Obedeci imediatamente. Quem sou eu para desobedecer a um gigante. 

Abriu-me as mãos e nelas depositou o tal envelope. "Abre". De novo aquele vislumbre, estranho, de vitória. "Abre!", repetiu, Dentro,  uma fotografia. Encontrara-a nas muitas pesquisas que ainda hoje faz, ao que muitos ainda hoje partilham: imagens de quem lhes é desconhecido, mas sabem, por terem palmilhado os mesmos espinhos, da possibilidade de ser o ente querido de alguém saudoso das suas feições. "Aqui", apontou um moço "é o meu irmão!". Alguém, dentro daquele campo de reclusos, os fotografara e lá estava aquele sobre quem esforços foram envidados a fim de lhe anular a sua passagem por este mundo. Mais de 30 anos depois. "Olha bem para ele, olha bem!", mas eu já tinha olhado e já sorria com ela. O seu filho é a réplica perfeita do tio.  Nada mais dissemos uma à outra, somente sorriamos, cúmplices e testemunhas de algo maior.  Saímos dali de braços entrelaçados em direcção ao mar. Por ali ficamos, admirando-lhe o bailado, em silêncio, polvilhado pelo som do caminhar das ondas e, posso jurar, por um riso cristalino. Muito, muito baixinho.

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